Vital andar nú
Eu: Boas... estás por aí Miller?
Miller: Estou... estou... aqui mais ao fundo, tens que descer mais um pouco.
Eu: ...onde? Bolas... tens que pedir ao chifrudo umas luzes aqui para baixo... arre que não se vê um palmo à frente do nariz, um gajo ainda se aleija sem querer.
Miller: Luz?... haveria de ser bonito, Luz no purgatório... isso é coisa que não há nem pode haver FC... tu deverias saber isso. Cá em baixo quem quer Luz tem que a trazer consigo, não podes esperar que ta dêem... não se dá nada a ninguém, antes pelo contrário... por aqui tudo se tira a quem cá vem.
Eu: ...sim, eu sei... é uma força de expressão. Bem sei que quem aqui vem, vem por sua conta e risco.
Miller: Sim, normalmente são só viagens de ida... considera-te um priviligiado por teres bilhete de retorno, não sei como o fazes... mas de facto este teu pedido tem que se lhe diga... eu consigo ver-te bem, um pouco desfocado pela temperatura, mas ainda assim consigo ver-te... e tu? Vejo-te com um olhar distante e às apalpadelas... porquê?
Eu: É verdade, aqui em baixo e desde a última vez que cá vim que assim é... percebo mal os contornos do que me rodeia, mas ainda assim algo me seduz aqui, é mais forte que o medo do desconhcido, talvez por saber que cá estás e que se chamar por ti, logo te apressas a responder...
Miller: Respondo-te... sim, porque outra coisa não poderia fazer, as tuas visitas são para mim importantes, tenho-as como vitais para a minha sanidade mental.
Eu: Vitais... ?
Miller: ...sim, vitais. São estas tuas visitas que me ajudam a arrumar ideias, a tornar coerente o meu discurso comigo mesmo, sabes... passo muito tempo sozinho com os meus pensamentos e preciso de quando em vez de os verbalizar, de os tornar matéria, de lhes dar sentido, portanto.
Eu: Percebo-te, aliás comigo passa-se mais ou menos o mesmo, sinto que aqui posso ser eu mesmo, sem travão, sem capas nem máscaras...
Miller: ...se as trouxesses, às capas e máscaras, quero eu dizer... não entrarias, porque não sei se reparas, mas aqui em baixo andas sempre despido.
Eu: ...é verdade... aquilo que poderia ser constrangedor, o andarmos nús de nós mesmos, torna-se aqui um modo de estar, uma vivência fundamental.
Miller: Vital, então...
Eu: Sim Miller, vital.